Acção
A ação principal é a construção do Convento de
Mafra. Encontra-se um entrelaçamento de dados históricos, como da
promessa de D.João V de construir o convento, e o sofrimento do povo que nele
trabalhou; conhece-se a situação económica e social do país, os auto-de-fés
praticados pela Inquisição, o sonho e a construção da passarola voadora pelo
padre Bartolomeu de Gusmão, as críticas ao comportamento do clero, os
casamentos da infanta Maria Bárbara e do príncipe D.José.
Paralelamente, encontra-se a história do amor de Baltasar e de Blimunda,
dois seres que partilham o amor e o sonho do padre Bartolomeu de Gusmão. E é
com a vontade dOs três e com todas as vontades do domínio do fantástico que a
Passarola levanta voo.
São estas as personagens que muitas das vezes estabelecem o fio condutor
da intriga e que lhe conferem fragmento e espiritualidade, de ternura,
misticismo e de magia. As obras do convento e os espaços sociais de Lisboa e
Mafra dão frequentemente lugar a uma intriga de profunda humanidade trágica. As
duas ações recriam situações, costumes, tradições, ambientes e problemas, sendo
que o narrador nos convida a refletir sobre o presente.
Tempo
O tempo em Memorial
do Convento pode ser perspectivado segundo três vertentes: o tempo
histórico (pertencente à História de Portugal); o tempo da narrativa (história
contada por Saramago), e por último, o tempo do discurso que é aquele que,
sendo relativamente vago (dias, meses, anos), remete para a sucessão de
acontecimentos na narrativa.
Já sabemos
que o tempo histórico corresponde a alguns anos do reinado de D.
João V, designadamente no que se refere à sua promessa de emergir um convento
de franciscanos “em troca” de um descendente.
Assim, a
primeira pedra da obra foi colocada no dia 17 de Novembro de 1717 (o que, de
facto, aconteceu historicamente), sendo a Basílica do Convento de Mafra
inaugurada ainda em vida d’el-rei, a 22 de Outubro de 1730, depois de
aceleradas as obras e recrutados à força milhares de membros do Povo.
Quanto ao tempo
da narrativa saramaguiana, existem, no romance, informações explícitas
ou indiretas a vários momentos da nossa cronologia, que se resumem a 28 anos.
Consideremo-los agora:
- 1711 É a primeira referência
temporal, quando se lê a propósito d’el-rei D. João V “um homem que ainda
não fez vinte e dois anos” (el-rei nasceu em 1689);
- 17 de
Novembro de 1717 marca
o início das obras em Mafra, com a colocação e bênção da primeira pedra;
- 8 de
Junho de 1719 é a
data referida para a procissão do Corpo de Deus;
- 1727 é o ano implicado na sequência
frásica “dezasseis anos passaram desde que a vimos pela primeira vez” –
sobre Blimunda;
- 22 de
Outubro de 1730, data
indicada por D. João V para a sagração da Basílica, momento da celebração
dos seus 41 anos de idade;
- 1739 é a última data implicada na
obra, por meio da frase que inicia o último capítulo de Memorial do Convento,
“Durante nove anos, Blimunda procurou Baltasar”, momento que se seguiu ao
desaparecimento misterioso deste homem.
No que diz
respeito ao tempo do discurso, o romance refere-se à passagem do
tempo dentro da narrativa, através do recurso a dias, meses e anos, como
acontece nos exemplos a seguir indicados:
- “Ao outro dia, depois d’el-rei
partir para a cortes”;
- “Aí está Junho”;
- “Agosto acabou, Setembro vai em
meio”.
É neste
tipo de tempo, o do discurso, que o narrados, omnisciente e sempre sabedor,
manipula as informações que quer dar aos leitores, referindo-se a tempos
anteriores à construção do convento, ou posteriores a ela. Essa técnica de
referência temporal é conseguida através de analepses, prolepses, elipses e
resumos, que vão fazendo variar o ritmo do discurso e da narração.
Espaço:
Espaço Físico:
É o espaço real, onde os acontecimentos
ocorrem, confere verosimilhança à história narrada. O cenário da obra tem dois
macro espaços:
Lisboa, cujos
micro-espaços são:
Abegoaria - na Quinta do
Duque de Aveiro, em S.Sebastião da Pedreira, é o local onde a passarola é
construída.
Terreiro do Paço - local onde se
situava o palácio do rei, é o centro do poder;
Rossio - é o centro urbano onde tem lugar
as festividades como os autos-de-fé, as procissões e as touradas;
Mafra, cujos
micro-espaços são:
Ilha da Madeira - é um aglomerado
de barracões de madeira onde se localiza os alojamentos dos operários que
trabalham na construção;
Vila de Mafra - é uma pequena
população que sobrevive pela agricultura e que vive isolada da civilização até
o rei escolher Mafra como local da construção do convento;
Alto da Vela - é o local da
construção do convento;
- Espaço
Social:
É relatado através de determinados
momentos e do percurso de personagens que tipificam um determinado grupo
social, caracterizando-o. O ponto de vista sociológico em que o narrador se
coloca permite-lhe apresentar um quadro claro da vida social do século XVIII.
- A vida na corte, com a apresentação do
séquito real, do vestuário das personagens, das vénias protocolares, do ritual
das relações entre o rei e a rainha e todos aqueles que frequentam o paço,
sobretudo o clero (Cap. I);
- Diversas procissões, nomeadamente, a
de penitência pela altura da Quaresma (Cap. III), a dos autos-de-fé (Cap. V e
XXV); a do Corpo de Deus em Junho (Cap. XIII); que atestam a influência da
religião na sociedade;
- O batizado da princesa Maria Bárbara
no dia da Nossa Senhora do Ó (VII);
- A tourada em Lisboa, no Terreiro do
Paço (IX);
- Os festejos da inauguração e da bênção
da primeira pedra do convento de Mafra (XII);
- As lições de música da infanta Maria
Bárbara ministradas por Domenico Scarlatti (XVI);
- A epidemia de cólera e febre-amarela
que dizima o povo (XV);
- O cortejo nupcial que retrata os
casamentos da infanta Maria Bárbara e do príncipe D. José com o príncipe e
infanta espanhóis (XXII);
- Sagração, em 1730, do convento
de Mafra, apesar de ainda não concluídas as obras (XXIV) …
- Espaço Psicológico:
Este
espaço é entendido através do monólogo interior em que as personagens revelam o
seu íntimo ou representado através do sonho/imaginação da evocação, da memória
e da emoção, podendo, também, ser sugerido através da descrição de atmosferas
ilustrativas do pensamento predominante de uma época.
Ora,
em Memorial do Convento, a vida da sociedade do século XVIII pauta-se por uma
religiosidade fanática e opressiva que dita as regras do comportamento social.
É exemplo deste espaço psicológico quando Baltasar relembra o momento em que
perdeu a sua mão esquerda na guerra.
Estrutura da obra
A análise de Memorial do
Convento permite constatar a existência de duas narrativas simultâneas: uma de carácter histórico – a
construção do convento de Mafra decretada pelo Rei D. João V – e outra ficcionada – a construção da
passarola que engloba a história de amor entre Baltasar e Blimunda.
A ação principal diz
respeito à concretização do plano de D.João V – a edificação do convento. Mas
nesta encaixam-se outras ações, constituindo diferentes linhas de acção que se
articulam com a primeira.
Importa refletir sobre a especificidade do estilo saramaguiano, que já fez
escola, e nos dá a perceber algumas ruturas com a norma linguística, sobretudo
ao nível da pontuação, da separação de falas e de discursos e da utilização da
maiúscula no meio da frase.
Estes aspetos ultrapassam o seu pendor exclusivamente gráfico e repercutem- se
na própria teia, tecida pelo narrador, onde não se destrinçam sem algumas
dificuldades as origens e a pertença de vozes da narrativa manobradas e
interrompidas, qui e acolá, com este ou aquele comentário ou aparte, a seu
bel-prazer.
Dimensão simbólica/ histórica em Memorial do Convento
As personagens de Blimunda, com o seu poder de visão,
compreende as coisas sobre a vida, a morte, o pecado e o amor, e simboliza, na
obra, olhar da «História» que o narrador exercita, denunciando a moral
duvidosa, os excessos da corte, o materialismo e hipocrisia do clero, as
injustiças da Inquisição, o terror, o obscurantismo de uma época, a miséria e
as diferenças sociais.
O número sete, que muitas vezes aparece
em Memorial do Convento, também carrega alguma
simbologia. Sete são as vezes que Blimunda passa em Lisboa, em demanda de
Baltasar. Este número regula os ciclos da vida e da morte na Terra e pode
ligar-se à ideia de felicidade, de totalidade, de ordem moral e espiritual.
O Sol, associado a Baltasar e ao povo, sugere a ideia de vida, de
renovação de energias (o povo trabalha até à exaustão no convento, Baltasar
constrói uma máquina, mesmo depois de amputado). Como o Sol, que todos os
dias tem de vencer os guardiães da noite, também Baltasar vence as forças
obscuras da ignorância e da intolerância ao voar.
A Lua,
símbolo do ritmo biológico da Terra, traduz a força vital que é representada
pelas vontades recolhidas por Blimunda
para fazer voar a passarola. Associada a Blimunda, lembra o seu
mágico poder de «ver às escuras».
A passarola traduz a harmonia entre o sonho e a sua realização.
Graças ao sonho, foi possível juntar a ciência, o trabalho artesanal, a magia e
a arte, para fazer a passarola voar. Representa o progresso, a liberdade,
a alternativa a um espaço de repressão, intolerância e violência.
Visão crítica
Desde o início que o Memorial do Convento se apresenta como uma
crítica cheia de ironia e sarcasmo à fortuna do rei e de alguns nobres por
oposição à extrema pobreza do povo.
Em Memorial do Convento, José saramago apresenta uma caricatura da
sociedade portuguesa da época de D. João V, revelando-se antimonárquico e com
um humanismo fechado à transcendência, bastante angustiado e pessimista. Nas
questões religiosas, não só usa a ironia, como também se revela frontal nas
apreciações à Inquisição e aos santos que a ela se ligaram como S.Domingos e
Santo Inácio, considerados «ibéricos e sombrios, logo demoníacos, se não é isto
ofender o demónio». Esta acusação resulta de toda a imagem histórica dos tempos
inquisitoriais e das práticas então havidas. Há uma constante denúncia da
Inquisição e dos seus métodos e uma crítica às pessoas que dançam em volta das
fogueiras onde se queimaram os condenados.
A sátira estende-se a Mafra e à situação dos trabalhadores; à atitude do
Rei em obrigar todo o homem válido a trabalhar no convento; aos príncipes, como
D.Francisco, que se entretém a «espingardear» os marinheiros ou quer seduzir a
rainha, sua cunhada, e tomar o trono.
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