Modo dramático
A
palavra teatro significa literalmente o lugar de onde se olha.
O teatro é um espetáculo: como tal, requer a presença física de atores,
representando para um público, dando vida a um texto através de palavras
proferidas em cena. O texto de teatro é concebido para ser representado: ler
uma obra de teatro impõe ter em conta como será representada. A peça de teatro
não se reduz à linguagem verbal; comunica informações e produz efeitos através
de todas as componentes do espetáculo. Ao texto dramático (que fixa o discurso
das personagens) junta-se, no momento da representação, elementos visuais (
gestos, objetos, cenários, luzes...) e sonoros ( intonações, sons, música). O
autor dramático escreve um texto com vista à representação, deixando sempre uma
margem de liberdade ao encenador e aos atores que se apropriam do texto para o
fazer reviver em cena. Por isso, ler um texto de teatro não é o mesmo que
vê-lo representado, sendo essencial para a sua leitura descodificar as
informações contidas nas didascálias, que fazem parte integrante do texto
dramático, e interpretar os sentidos múltiplos ou ambíguos atribuídos ás diferentes personagens, bem como as
relações que estas mantêm entre si.
Texto principal e didascálico
O texto
dramático é constituído por dois tipos de texto:
- O texto
principal, constituído pelas falas das personagens;
- O texto
didascálico ou secundário, cujo objetivo é fornecer ao leitor a listagem
inicial das personagens, a distribuição das falas pelas diferentes personagens,
a divisão do texto em atos e cenas, as indicações sobre a posição que cada
personagem deve assumir em palco, os seus gestos, o tom de voz, a expressão do
rosto, o cenário, o guarda-roupa, a iluminação, os adereços de cena, enfim,
todas as informações e indicações pensadas pelo autor para a representação da
peça.
As indicações são bastante cuidadosas no que diz
respeito:
· Às atitudes das personagens
- " A pergunta é acompanhada dum gesto que revela a
impotência da personagem perante o problema em causa. Este gesto é francamente
"representado". " (p.15)
· À iluminação
- " Ao abrir o pano a cena está às escuras, encontrando-se uma única
personagem intensamente iluminada, ao centro e à frente do palco" (p.15)
· Ao cenário e adereços de cena
- " De pé e sentadas, várias figuras populares conversam. Algumas
dormem estendidas no chão. Uma velha, sentada num caixote, cata piolhos a uma
rapariga." (p.16)
· Ao som
- " Começa a ouvir-se, ao
longe, o ruído dos tambores." (p.16
Personagens:
Gomes Freire D'Andrade - personalidade carismática e
de prestígio, admirada pelo povo, desperta ódios e inveja nos poderosos,
opõe-se à presença inglesa em Portugal e à ausência do rei. Luta pela
liberdade.
Matilde de Melo - " a companheira de todas as horas",
corajosa, exprime romanticamente o amor; reage violentamente perante o ódio e
as injustiças; afirma o valor da sinceridade; desmascara o interesse, a
hipocrisia; ora desanima, ora se enfurece, ora se revolta, mas luta sempre.
Opressores:
D. Miguel Forjaz - prepotente, corrompido pelo poder,
vingativo.
Beresford - poderoso, mercenário, interesseiro, calculista,
trocista, sarcástico general inglês, severo e disciplinador; Mandou matar Gomes
Freire D'Andrade.
Principal Sousa - fanático, corrompido pelo poder,
eclesiástico.
Os Delatores:
Vicente - demagogo, sarcástico, falso humanitarista,
movido pelo interesse da recompensa material, adulador no momento oportuno,
hipócrita, despreza a sua origem e o seu passado, capaz de recorrer à traição
para ser promovido socialmente.
Andrade Corvo - Capitão do exército, mau oficial, ignorante,
pedreiro-livre (ex-maçon), traidor, desonesto, corrupto, denunciante,
interesseiro, oportunista.
Morais Sarmento- Capitão do exército, ex-membro da maçonaria,
traidor, preocupado com a opinião alheia, desonesto, corrupto, denunciante,
interesseiro, ambicioso.
Povo:
Manuel - " o mais consciente dos populares",
andrajosamente vestido; assume algum protagonismo por dar início aos dois atos;
denuncia a opressão a que o povo tem estado sujeito e a incapacidade de
conseguir a libertação e sair da miséria em que se encontra.
Antigo Soldado – antigo militar, experiente, alegre,
contador de histórias passadas.
Rita – mulher sensível, fraterna, solidária,
apaixonada pelo marido.
Populares – pobres, miseráveis andrajosos.
Os amigos:
Frei Diogo – honesto, fiel, solidário,
caracter de elevada espiritualidade.
Sousa Falcão - " o inseparável amigo", sofre junto
de Matilde perante a condenação do general, assume os mesmos ideias de justiça
e de liberdade, mas não teve a coragem daquele.
Estrutura
Estrutura
Externa
Contrariamente
ao texto de teatro clássico, Felizmente
há luar apresenta-se apenas dividido
em dois atos, sem qualquer indicação de cenas. Os momentos cénicos são
identificados pelas saídas e entradas de personagens e pelo jogo de sombra/luz
e som.
Estrutura
Interna
A obra compõe-se de três momentos:
- A exposição, em que se
apresentam as personagens e informações elementares sobre a Acão e seus
antecedentes, o tempo, o conflito e o espaço da ação, que tem os seus momentos
de avanço e de retardamento;
- O clímax, que corresponde ao
ponto em que o conflito atinge a máxima intensidade dramática e em que se
revelam as posições antagónicas;
- O desfecho, que é o desenlace
da ação dramática.
1 – A saia
verde
-A saia é
uma peça feminina e o verde está conotado com a esperança, traduzindo uma
sensação de repouso, envolvente e refrescante. A sai foi uma prenda comprada em
Paris (terra da liberdade), no Inverno, com o dinheiro da venda de duas
medalhas;
- cor que
conota o amor pelo seu “companheiro de todas as horas” e a esperança de que a
sua morte possa dar lugar á vida e á renovação.
- Ao
escolher aquela saia para esperar o companheiro após a morte, destaca a
“alegria” do reencontro (“agora, que se acabaram as batalhas, vem apertar-me
contra o peito”).
2 - O título
/ a luz / a noite / o luar
O título surge
por duas vezes ao longo da peça, inserido na fala das personagens:
- D. Miguel
salienta o efeito dissuasor que aquelas execuções poderão exercer sobre todos
os que discutem as ordens dos Governadores.
Esta primeira
referência ao título da peça, colocada na fala do Governador, está relacionada
com o desejo expresso de garantir a eficácia desta execução pública: a noite é
mais assustadora, as chamas seriam visíveis de vários pontos da cidade e o luar
atrairia as pessoas à rua para assistirem ao castigo, que se pretendia
exemplar.
- Na altura
da execução, as últimas palavras de Matilde, “companheira de todas as horas” do
General Gomes Freire, são de coragem e estímulo para que o Povo se revolte
contra a tirania dos governantes.
A luz,
simbolicamente, está associada à vida, à saúde, à felicidade, enquanto a noite
e as trevas se associam ao mal, à infelicidade, ao castigo, à perdição e à
morte. Na linguagem e nos ritos maçónicos, após ter participado de olhos vendados
em alguns rituais, após prestar juramento, o neófito poderia “receber a luz”, o
que significava ser admitido...
A lua,
simbolicamente, por estar privada de luz própria, na dependência do Sol, e por
atravessar fases, mudando de forma, representa a dependência, a periodicidade e
a renovação. A lua é, pois, símbolo de transformação e de crescimento.
A lua é
ainda considerada como “o primeiro morto”, dado que durante três noites em cada
ciclo lunar ela está desaparecida, como morta; depois reaparece e vai crescendo
em tamanho e em luz...Ao acreditar na vida para além da morte, o homem vê na
lua o símbolo desta passagem da vida para a morte e da morte para a vida...
Por isso, na
peça, nestes dois momentos em que se faz referência direta ao título, a afirmação
de que “felizmente há luar” pode indiciar duas perspetivas de análise e de
posicionamento das personagens:
- As forças
das trevas, do obscurantismo, do anti-humanismo utilizam, paradoxalmente, o
lume (fonte de luz e de calor) para “purificar a sociedade” ( a Inquisição
considerava a fogueira como fonte e forma de purificação).
- Se a luz é
redentora, o luar poderá simbolizar a caminhada da sociedade em direção à
redenção, em busca da luz e liberdade...
Assim, dado
que o luar permitirá que as pessoas possam sair de suas casas (ajudando a
vencer o medo e a insegurança, na noite da cidade), quanto maior for a
assistência, isso significará:
- para uns,
que mais pessoas ficarão “avisadas” e o efeito dissuasor será maior;
- para
outros, que mais pessoas poderão um dia seguir essa luz e lutar pela liberdade.
3 – A
fogueira / o lume
Após a
prisão do General, num diálogo de tom “profético” e com “voz triste” (segundo a
didascália), o Antigo Soldado, atormentado, afirma: “Prenderam o general...
Para nós, a noite ficou ainda mais escura...”. A resposta ambígua do primeiro
Popular pode assumir também um carácter de profecia e de esperança: “É por
pouco tempo, amigo. Espera pelo clarão das fogueiras...”
Matilde, ao
afirmar que aquela fogueira de S. Julião da Barra ainda havia de “incendiar
esta terra!”, mostra que a chama se mantém viva e que a liberdade há-de chegar.
Tempo em Felizmente há luar
Em relação a Felizmente
há luar! Podemos falar sobre três tempos: o tempo histórico, o tempo da acção
e o tempo da escrita.
Tempo histórico
Tempo histórico
A ação de Felizmente há luar representa a história do movimento
liberal oitocentista, no rescaldo das invasões francesas e a
"protecção" britânica que se lhe seguiu, revelando as condições da
sociedade portuguesa no início do século XIX e a acção de resistência dos mais
esclarecidos. A conspiração, encabeçada
por Gomes Freire, manifestava-se contra a ausência da corte no Brasil, contra o
poder absolutista e tirânico dos governadores e contra a presença inglesa
personificada por Beresford. Destaca-se ao longo do texto, a situação do povo
oprimido e a falta de perspetiva para o futuro. Os acontecimentos históricos
reveladores de um tempo de uma crise militar, de uma crise política, económica,
ideológica e a data de execução do General Gomes Freire, são percetíveis
através das falas das personagens (“Vê-se agente livre dos Franceses, e zás!,
cai na mão dos Ingleses!”/”sempre a Revolução francesa…”/”Esta praga lhe rogo
eu, Matilde de Melo, mulher de Gomes Freire d’Andrade, hoje 18 de Outubro de
1817.”).
Tempo da acção
Felizmente há luar! tem como cenário o ambiente político do início do século XIX: em 1817, uma conspiração, encabeçada por Gomes Freire de Andrade, que pretendia o regresso do Brasil do rei D.João VI e que se manifestava contrária à presença inglesa, foi descoberta e reprimida com muita severidade: os conspiradores, acusados de traição à pátria, foram queimados publicamente e Lisboa foi convidada a assistir.
As indicações temporais fornecidas pelo texto permitem-nos verificar que a intriga se desenrola de forma linear e progressiva, embora não sejam muito precisas as indicações sobre a duração da acção.
Tempo da escrita
Felizmente há luar! foi publicado em 1961, em plena ditadura do regime de Salazar. Sttau Monteiro viu na época de 1810-1820 grandes semelhanças com a realidade portuguesa da década de 1950-1960 e marca uma posição pelo conteúdo fortemente ideológico, denunciando a opressão vivida na época em que escreve a obra, em 1961, estabelecendo um paralelismo entre as duas épocas.
Paralelismo entre o Tempo da História (1817) e o Tempo da Escrita (1961):
O dramaturgo recupera
acontecimentos históricos passados (revolta de 1817 que deu início às lutas
liberais em Portugal) para denunciar a situação social e política do seu
próprio tempo (a crise dos anos 60, durante a ditadura Salazarista, que
culminará com o 25 de Abril e o triunfo da Democracia). Sttau Monteiro pretende
alertar os seus contemporâneos para a ignorância, a miséria e a opressão,
incentivando-os a lutarem por uma sociedade mais justa e solidária que permita
uma verdadeira realização do Homem. Felizmente Há Luar! é, por
isso, uma obra metafórica/alegórica.
Espaço
Em Felizmente há
luar! a mudança de espaço físico é
sugerida essencialmente pelos efeitos de luz. O espaço cénico é pobre, reduz-se
a alguns objetos que têm a função de ilustrar o espaço social. Esta
simplicidade parece ser intencional e mais importante que os cenários são a
intensidade do drama que é realçada por esta economia de meios.
O espaço psicológico
caracteriza-se pela relação afetiva que algumas personagens mantêm com
determinados espaços que, evocados pela memória, sugerem características
psicológicas das personagens que lhes fazem referência. O espaço social é-nos
mostrado através das didascálias, no que diz respeito ao guarda-roupa e
adereços, atitudes e movimentações das personagens, informações transmitidas
entre personagens e registos de língua.
Ato I:
. Ruas de Lisboa (onde se
encontram os populares)
. Local onde D.Miguel Forjaz
recebe Vicente
. Palácio dos governadores
do Reino, no Rossio
. Referência à casa de Gomes
Freire lá para os lados do Rato e espaços frequentados pelos revolucionários
conspiradores – café no Cais do Sodré; Botequim do Marrare; loja maçónica na
rua de São Bento.
Ato II:
.
Ruas de Lisboa;
. Casa de Matilde de Melo;
. À porta da casa de D.
Miguel Forjaz;
. Local onde Matilde fala
com o Principal Sousa;
. Alto da serra onde Matilde
e Sousa Falcão observam as fogueiras que queimam os revolucionários;
. Referência à masmorra de
S. Julião da Barra, Campo de Santana para onde são levados os presos, aldeia
onde Matilde cresceu, Paris, campos da Europa onde o General combateu.
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