domingo, 3 de junho de 2012

Felizmente há luar!



 Modo dramático
A palavra teatro significa literalmente o lugar de onde se olha. O teatro é um espetáculo: como tal, requer a presença física de atores, representando para um público, dando vida a um texto através de palavras proferidas em cena. O texto de teatro é concebido para ser representado: ler uma obra de teatro impõe ter em conta como será representada. A peça de teatro não se reduz à linguagem verbal; comunica informações e produz efeitos através de todas as componentes do espetáculo. Ao texto dramático (que fixa o discurso das personagens) junta-se, no momento da representação, elementos visuais ( gestos, objetos, cenários, luzes...) e sonoros ( intonações, sons, música). O autor dramático escreve um texto com vista à representação, deixando sempre uma margem de liberdade ao encenador e aos atores que se apropriam do texto para o fazer reviver em cena. Por isso, ler um texto de teatro não é o mesmo que vê-lo representado, sendo essencial para a sua leitura descodificar as informações contidas nas didascálias, que fazem parte integrante do texto dramático, e interpretar os sentidos múltiplos ou ambíguos atribuídos ás diferentes personagens, bem como as relações que estas mantêm entre si.
Texto principal e didascálico
O texto dramático é constituído por dois tipos de texto:
- O texto principal, constituído pelas falas das personagens;
- O texto didascálico ou secundário, cujo objetivo é fornecer ao leitor a listagem inicial das personagens, a distribuição das falas pelas diferentes personagens, a divisão do texto em atos e cenas, as indicações sobre a posição que cada personagem deve assumir em palco, os seus gestos, o tom de voz, a expressão do rosto, o cenário, o guarda-roupa, a iluminação, os adereços de cena, enfim, todas as informações e indicações pensadas pelo autor para a representação da peça.

As indicações são bastante cuidadosas no que diz respeito:

· Às atitudes das personagens  
                  - " A pergunta é acompanhada dum gesto que revela a impotência da personagem perante o problema em causa. Este gesto é francamente "representado". " (p.15)

· À iluminação
               - " Ao abrir o pano a cena está às escuras, encontrando-se uma única personagem intensamente iluminada, ao centro e à frente do palco" (p.15)

· Ao cenário e adereços de cena
               - " De pé e sentadas, várias figuras populares conversam. Algumas dormem estendidas no chão. Uma velha, sentada num caixote, cata piolhos a uma rapariga." (p.16)

· Ao som
               - " Começa a ouvir-se, ao longe, o ruído dos tambores." (p.16

Personagens:


Gomes Freire D'Andrade - personalidade carismática e de prestígio, admirada pelo povo, desperta ódios e inveja nos poderosos, opõe-se à presença inglesa em Portugal e à ausência do rei. Luta pela liberdade. 

Matilde de Melo - " a companheira de todas as horas", corajosa, exprime romanticamente o amor; reage violentamente perante o ódio e as injustiças; afirma o valor da sinceridade; desmascara o interesse, a hipocrisia; ora desanima, ora se enfurece, ora se revolta, mas luta sempre.


Opressores:


D. Miguel Forjaz - prepotente, corrompido pelo poder, vingativo. 

Beresford - poderoso, mercenário, interesseiro, calculista, trocista, sarcástico general inglês, severo e disciplinador; Mandou matar Gomes Freire D'Andrade.

Principal Sousa - fanático, corrompido pelo poder, eclesiástico.


Os Delatores:


Vicente - demagogo, sarcástico, falso humanitarista, movido pelo interesse da recompensa material, adulador no momento oportuno, hipócrita, despreza a sua origem e o seu passado, capaz de recorrer à traição para ser promovido socialmente. 

Andrade Corvo - Capitão do exército, mau oficial, ignorante, pedreiro-livre (ex-maçon), traidor, desonesto, corrupto, denunciante, interesseiro, oportunista.

Morais Sarmento- Capitão do exército, ex-membro da maçonaria, traidor, preocupado com a opinião alheia, desonesto, corrupto, denunciante, interesseiro, ambicioso. 


Povo:


Manuel - " o mais consciente dos populares", andrajosamente vestido; assume algum protagonismo por dar início aos dois atos; denuncia a opressão a que o povo tem estado sujeito e a incapacidade de conseguir a libertação e sair da miséria em que se encontra.

Antigo Soldado – antigo militar, experiente, alegre, contador de histórias passadas.

Rita – mulher sensível, fraterna, solidária, apaixonada pelo marido.

Populares – pobres, miseráveis andrajosos.


Os amigos:

Frei Diogo – honesto, fiel, solidário, caracter de elevada espiritualidade. 

Sousa Falcão - " o inseparável amigo", sofre junto de Matilde perante a condenação do general, assume os mesmos ideias de justiça e de liberdade, mas não teve a coragem daquele.

Estrutura
                                          
Estrutura Externa
     Contrariamente ao texto de teatro clássico, Felizmente há luar  apresenta-se apenas dividido em dois atos, sem qualquer indicação de cenas. Os momentos cénicos são identificados pelas saídas e entradas de personagens e pelo jogo de sombra/luz e som. 

Estrutura Interna
A obra compõe-se de três momentos:

- A exposição, em que se apresentam as personagens e informações elementares sobre a Acão e seus antecedentes, o tempo, o conflito e o espaço da ação, que tem os seus momentos de avanço e de retardamento;

- O clímax, que corresponde ao ponto em que o conflito atinge a máxima intensidade dramática e em que se revelam as posições antagónicas;

- O desfecho, que é o desenlace da ação dramática.

   Aspetos simbólicos


1 – A saia verde
-A saia é uma peça feminina e o verde está conotado com a esperança, traduzindo uma sensação de repouso, envolvente e refrescante. A sai foi uma prenda comprada em Paris (terra da liberdade), no Inverno, com o dinheiro da venda de duas medalhas;
- cor que conota o amor pelo seu “companheiro de todas as horas” e a esperança de que a sua morte possa dar lugar á vida e á renovação.
- Ao escolher aquela saia para esperar o companheiro após a morte, destaca a “alegria” do reencontro (“agora, que se acabaram as batalhas, vem apertar-me contra o peito”).
   
2 - O título / a luz / a noite / o luar
O título surge por duas vezes ao longo da peça, inserido na fala das personagens:

- D. Miguel salienta o efeito dissuasor que aquelas execuções poderão exercer sobre todos os que discutem as ordens dos Governadores.
Esta primeira referência ao título da peça, colocada na fala do Governador, está relacionada com o desejo expresso de garantir a eficácia desta execução pública: a noite é mais assustadora, as chamas seriam visíveis de vários pontos da cidade e o luar atrairia as pessoas à rua para assistirem ao castigo, que se pretendia exemplar.

- Na altura da execução, as últimas palavras de Matilde, “companheira de todas as horas” do General Gomes Freire, são de coragem e estímulo para que o Povo se revolte contra a tirania dos governantes.

A luz, simbolicamente, está associada à vida, à saúde, à felicidade, enquanto a noite e as trevas se associam ao mal, à infelicidade, ao castigo, à perdição e à morte. Na linguagem e nos ritos maçónicos, após ter participado de olhos vendados em alguns rituais, após prestar juramento, o neófito poderia “receber a luz”, o que significava ser admitido...

A lua, simbolicamente, por estar privada de luz própria, na dependência do Sol, e por atravessar fases, mudando de forma, representa a dependência, a periodicidade e a renovação. A lua é, pois, símbolo de transformação e de crescimento.
A lua é ainda considerada como “o primeiro morto”, dado que durante três noites em cada ciclo lunar ela está desaparecida, como morta; depois reaparece e vai crescendo em tamanho e em luz...Ao acreditar na vida para além da morte, o homem vê na lua o símbolo desta passagem da vida para a morte e da morte para a vida...
Por isso, na peça, nestes dois momentos em que se faz referência direta ao título, a afirmação de que “felizmente há luar” pode indiciar duas perspetivas de análise e de posicionamento das personagens:
- As forças das trevas, do obscurantismo, do anti-humanismo utilizam, paradoxalmente, o lume (fonte de luz e de calor) para “purificar a sociedade” ( a Inquisição considerava a fogueira como fonte e forma de purificação).
- Se a luz é redentora, o luar poderá simbolizar a caminhada da sociedade em direção à redenção, em busca da luz e liberdade...
Assim, dado que o luar permitirá que as pessoas possam sair de suas casas (ajudando a vencer o medo e a insegurança, na noite da cidade), quanto maior for a assistência, isso significará:
- para uns, que mais pessoas ficarão “avisadas” e o efeito dissuasor será maior;
- para outros, que mais pessoas poderão um dia seguir essa luz e lutar pela liberdade.
3 – A fogueira / o lume

Após a prisão do General, num diálogo de tom “profético” e com “voz triste” (segundo a didascália), o Antigo Soldado, atormentado, afirma: “Prenderam o general... Para nós, a noite ficou ainda mais escura...”. A resposta ambígua do primeiro Popular pode assumir também um carácter de profecia e de esperança: “É por pouco tempo, amigo. Espera pelo clarão das fogueiras...”
Matilde, ao afirmar que aquela fogueira de S. Julião da Barra ainda havia de “incendiar esta terra!”, mostra que a chama se mantém viva e que a liberdade há-de chegar.

Tempo em Felizmente há luar

  Em relação a Felizmente há luar! Podemos falar sobre três tempos:  o tempo histórico, o tempo da acção e o tempo da escrita.

Tempo histórico
   A ação de Felizmente há luar representa a história do movimento liberal oitocentista, no rescaldo das invasões francesas e a "protecção" britânica que se lhe seguiu, revelando as condições da sociedade portuguesa no início do século XIX e a acção de resistência dos mais esclarecidos. A conspiração, encabeçada por Gomes Freire, manifestava-se contra a ausência da corte no Brasil, contra o poder absolutista e tirânico dos governadores e contra a presença inglesa personificada por Beresford. Destaca-se ao longo do texto, a situação do povo oprimido e a falta de perspetiva para o futuro. Os acontecimentos históricos reveladores de um tempo de uma crise militar, de uma crise política, económica, ideológica e a data de execução do General Gomes Freire, são percetíveis através das falas das personagens (“Vê-se agente livre dos Franceses, e zás!, cai na mão dos Ingleses!”/”sempre a Revolução francesa…”/”Esta praga lhe rogo eu, Matilde de Melo, mulher de Gomes Freire d’Andrade, hoje 18 de Outubro de 1817.”).


Tempo da acção 


  Felizmente há luar! tem como cenário o ambiente político do início do século XIX: em 1817, uma conspiração, encabeçada por Gomes Freire de Andrade, que pretendia o regresso do Brasil do rei D.João VI e que se manifestava contrária à presença inglesa, foi descoberta e reprimida com muita severidade: os conspiradores, acusados de traição à pátria, foram queimados publicamente e Lisboa foi convidada a assistir.
  As indicações temporais fornecidas pelo texto permitem-nos verificar que a intriga se desenrola de forma linear e progressiva, embora não sejam muito precisas as indicações sobre a duração da acção. 


Tempo da escrita


  Felizmente há luar! foi publicado em 1961, em plena ditadura do regime de Salazar. Sttau Monteiro viu na época de 1810-1820 grandes semelhanças com a realidade portuguesa da década de 1950-1960 e marca uma posição pelo conteúdo fortemente ideológico, denunciando a opressão vivida na época em que escreve a obra, em 1961, estabelecendo um paralelismo entre as duas épocas. 

Paralelismo entre o Tempo da História (1817) e o Tempo da Escrita (1961):
O dramaturgo recupera acontecimentos históricos passados (revolta de 1817 que deu início às lutas liberais em Portugal) para denunciar a situação social e política do seu próprio tempo (a crise dos anos 60, durante a ditadura Salazarista, que culminará com o 25 de Abril e o triunfo da Democracia). Sttau Monteiro pretende alertar os seus contemporâneos para a ignorância, a miséria e a opressão, incentivando-os a lutarem por uma sociedade mais justa e solidária que permita uma verdadeira realização do Homem. Felizmente Há Luar! é, por isso, uma obra metafórica/alegórica.



Espaço

  Em Felizmente há luar! a mudança de espaço físico é sugerida essencialmente pelos efeitos de luz. O espaço cénico é pobre, reduz-se a alguns objetos que têm a função de ilustrar o espaço social. Esta simplicidade parece ser intencional e mais importante que os cenários são a intensidade do drama que é realçada por esta economia de meios.

  O espaço psicológico caracteriza-se pela relação afetiva que algumas personagens mantêm com determinados espaços que, evocados pela memória, sugerem características psicológicas das personagens que lhes fazem referência. O espaço social é-nos mostrado através das didascálias, no que diz respeito ao guarda-roupa e adereços, atitudes e movimentações das personagens, informações transmitidas entre personagens e registos de língua. 



Ato I:

. Ruas de Lisboa (onde se encontram os populares)
. Local onde D.Miguel Forjaz recebe Vicente
. Palácio dos governadores do Reino, no Rossio
. Referência à casa de Gomes Freire lá para os lados do Rato e espaços frequentados pelos revolucionários conspiradores – café no Cais do Sodré; Botequim do Marrare; loja maçónica na rua de São Bento.
Ato II:

. Ruas de Lisboa;

. Casa de Matilde de Melo;

. À porta da casa de D. Miguel Forjaz;
. Local onde Matilde fala com o Principal Sousa;
. Alto da serra onde Matilde e Sousa Falcão observam as fogueiras que queimam os revolucionários;
. Referência à masmorra de S. Julião da Barra, Campo de Santana para onde são levados os presos, aldeia onde Matilde cresceu, Paris, campos da Europa onde o General combateu.

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