segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Fernando Pessoa Ortónimo

O fingimento artístico
Autopsicografia


O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.


E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.


E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.


Analisando…
O poeta é um fingidor (metáfora) - ocupa lugar de destaque no poema. Caracteriza-se pelo fingimento e finge tão bem que consegue fingir a dor que sente na realidade.
Coloca-nos assim perante dois tipos distintos de dor: a dor real, sentida e a dor fingida, imaginária. A dor fingida é comunicada através da linguagem verbal.
Uma perífrase inicia a segunda estrofe: "os que o lêem" - leitores.
A poesia é apresentada como expressão da profundidade negativa da alma do poeta: a dor. A dor sentida pelo poeta (real) serve de motivo à dor fingida e é expressa pela escrita pelo poeta que serve de motivo à dor sentida pelos leitores que serve de referência à dor fingida pelos leitores.
A terceira parte do poema, como a própria expressão "E assim" constitui uma espécie de conclusão: o coração (símbolo da sensibilidade) é um "comboio de corda" sempre a girar nas "calhas de roda" (que o destino fatalmente traçou) para "entreter a razão".
São também aqui marcados os dois pólos em que se processa a criação do poema: o "coração" (as sensações donde o poema nasce) e a "razão" (a imaginação, onde o poema é inventado).
Fecha-se neste fim do poema como que um círculo cuja linha limite marca uma pista sem fim em que nunca se esgota a dinâmica do jogo sensação-imaginação.


A dor de pensar
"Gato que brincas na rua"


Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.

Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.

És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.


Analisando...
A tendência excessiva para a intelectualidade e consequentemente para a abstracção leva Fernando Pessoa ortónimo a ser incapaz de sentir e, por isso mesmo, a desejar ser inconsciente para poder atingir uma felicidade cada vez mais inatingível. A “inveja” que o poeta sente dos seres felizes assume o auge no poema “ Gato que brincas na rua”, onde é o próprio animal, não pensa, porque não se conhece, porque que aparece como uma espécie de “modelo” para se atingir a felicidade (“Invejo a sorte que é tua/ Porque nem sorte se chama/ (...)És feliz porque és assim/ (...) eu vejo-me e estou sem mim, / conheço-me e não sou eu”).

Sonho/Realidade
“Tudo o que faço ou medito”


Tudo que faço ou medito
Fica sempre na metade.
Querendo, quero o infinito.
Fazendo, nada é verdade.

Que nojo de mim me fica
Ao olhar para o que faço!
Minha alma é lúcida e rica,
E eu sou um mar de sargaço –

Um mar onde bóiam lentos
Fragmentos de um mar de além…
Vontades ou pensamentos?
Não o sei e sei-o bem.


Analisando …
O tema é a dor que resulta da distância imensa entre o que se quer – o Tudo, o Infinito – e o que se realiza – o Nada, o aquém do sonho. Em Pessoa, e neste poema em três quadras de versificação regular (versos de seis sílabas), essa dor vai originar nojo de si mesmo e consciência aguda de, tendo uma alma lúcida e rica (e lúcida tem aqui o sentido primitivo de “cheia de luz”, luminosa) ser um mar de sargaço, mais parecido com algo de pantanoso, de charco – mar, segundo Pessoa, em que “bóiam lentos/ fragmentos de um mar de além”. Ou seja, em que se reflectem ainda vestígios, fragmentos de algo maior e distante. Fragmentos de quê? O sujeito afirma não o saber e ao mesmo tempo sabe-lo bem. E mais não diz. É que ele não tem que dizer, tem, quando muito, de sugerir. Porque, não o esqueçamos, “Sentir? Sinta quem lê!”.



A nostalgia de um bem perdido
“O menino de sua mãe”



No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas trespassado
– Duas, de lado a lado –,
Jaz morto, e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.


Tão jovem! Que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
«O menino da sua mãe».


Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
É boa a cigarreira,
Ele é que já não serve.


De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço... Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.


Lá longe, em casa, há a prece:
"Que volte cedo, e bem!"
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino da sua mãe.


Analisando...
No poema menino de sua mãe de Fernando Pessoa, vai sendo descrita progressivamente a figura de um jovem soldado morto. De facto, um conjunto de traços e situações caracterizadoras da figura surgem antepostas à sua identificação. “De balas trespassado”, “Jaz morto, e arrefece.”
Identificar aquele que “jaz morto e arrefece” como “o menino de sua mãe” dá-nos a imagem de um dramatismo extremo. Não há nada mais terrível do que a ideia de um filho morto, e ainda por cima longe de sua mãe. Este filho não tem nome, nem precisa, porque o anónimo soldado morto e abandonado é ainda e sempre o “menino” para a sua mãe.
A cigarreira dada pela mãe e o lenço dado pela ama que o ajudou a criar, são a imagem do seu passado de menino vivo junto de quem o ama. A presença de objectos preservados contrasta com o corpo morto e frio do soldado (“Está inteira/E boa a cigarreira./Ele é que já não serve”). A presença destes elementos é tão importante que o poeta reservou uma estrofe para cada um deles. Relativamente ao lenço, há uma sugestão de cor sobretudo na expressão “brancura alada” que inevitavelmente conduz à sugestão da imagem da pomba da paz.
O “menino de sua mãe” é a descrição dramática de um jovem soldado morto quando combatia, longe de casa, para defender o Império. No entanto, pode ver-se nele a representação do poeta que sabe ser impossível o regresso ao colo da sua mãe.
A infância ficou para trás, irremediavelmente perdida, morta. Relacionando este poema com a temática da nostalgia da infância, compreende-se o sentido desta representação.

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